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Transição e “descarbonização” energética no século XXI: A terceira revolução industrial

Transição e “descarbonização” energética no século XXI: A terceira revolução industrial
Altino Ventura Filho


O mundo e a humanidade, nesta primeira metade do século XXI, estão diante de um grande desafio: mudar de forma significativa os caminhos adotados nos últimos dois séculos para o desenvolvimento econômico/social/ambiental. Deve-se adotar novos procedimentos na utilização dos recursos naturais do planeta, em particular, os relacionados com os recursos hídricos e energéticos, e, adicionalmente, na produção de alimentos. Afinal, a população mundial é da ordem de 10 bilhões de habitantes com um nível de renda superior ao existente no passado. 


No que diz respeito aos recursos energéticos, a sociedade humana, depois de descobrir o fogo, passou a utilizar intensamente a biomassa através da queima da madeira/lenha na produção de energia/calor para a preparação de alimentos
e para a iluminação. Esse combustível existia em quantidade suficiente para atender às necessidades da população da época. Claro que outras fontes energéticas eram também utilizadas, como o sol (diretamente) e os ventos na navegação e nos famosos moinhos (imortalizados por Miguel de Cervantes, na sua obra prima “Dom Quixote de La Mancha”). No século XIX foi agregado e consolidado o uso do carvão mineral, combustível vantajoso em relação a biomassa, e que teve um papel
relevante na primeira revolução industrial. As máquinas a vapor utilizavam este combustível, substituindo com grande eficiência algumas das demais fontes energéticas, inclusive os músculos de humanos e animais. No século XX, o petróleo sustentou a segunda revolução industrial com os motores a explosão. Tornouse mais importante que o carvão mineral. Depois, o gás natural, que teve importante papel na produção de energia elétrica com o desenvolvimento das turbinas a ciclo combinado, de elevado rendimento. A importância destes três combustíveis elevou-se com a aplicação dos mesmos, não como energéticos, mas como matéria prima/insumo na indústria química. Estes combustíveis foram utilizados no mundo, de forma sempre crescente, na produção de energia nos últimos 200 anos.


A produção de energia viabiliza-se a partir da queima do combustível na reação química carbono/oxigênio, com a consequente liberação de calor e a inevitável emissão do CO2, gás provocador do efeito estufa, responsável pelo aquecimento do planeta e pelas consequentes mudanças climáticas. Os cenários estabelecidos pelo IPCC (Intergovernmental Panel on Climate Change) para a elevação da temperatura do planeta ao longo do atual século são catastróficos com consequências difíceis de serem precisamente identificadas para a vida na Terra. Entre eles, a produção de alimentos e os eventos climáticos extremos, como chuvas, terremotos, furacões, inundações, elevação do nível dos oceanos, etc. A produção de energia no planeta é majoritariamente oriunda dos três combustíveis fósseis, alcançando cerca de 80% do total mundial. Reduzir de forma significativa a utilização destes combustíveis, substituindo-os por outras fontes energéticas, não emissoras de gases de efeito estufa, não é uma tarefa fácil. Este é o grande desafio da humanidade nesta primeira metade do século atual. Pode-se, de certa forma, considerar uma “terceira revolução industrial” algo como a  “descarbonização” da economia mundial, que só é viável a longo prazo - várias décadas! Fala-se em resultados satisfatórios lá por 2050/2060.


Com essa introdução, podemos elaborar algumas reflexões sobre o papel do Brasil (e do Comitê Brasileiro de Barragens) neste desafio mundial, em particular quanto ao potencial e possibilidades nacionais de fontes energéticas com baixa emissão de gases de efeito estufa e de recursos hídricos, em especial, a hidroeletricidade e, consequentemente, as barragens, de amplo interesse do Comitê. O País tem uma matriz de oferta de energia com elevada participação de fontes renováveis, e, portanto, baixa emissão de gases de efeito estufa (cerca de 40% da matriz), quando comparada com a equivalente mundial (cerca de 14% da matriz) - dados da segunda metade da década passada, antes da pandemia.


Consequentemente, a participação dos combustíveis fósseis, no caso brasileiro, é baixa (cerca de 57% da matriz) diante do valor da ordem de 81% da mundial. Pode-se afirmar que a economia brasileira, quanto ao setor energético, já é bastante “descarbonizada” quando comparada com a mundial, sendo um exemplo muito bem sucedido de uma matriz energética limpa. Em outras palavras, contribui menos que o mundo para o aquecimento do planeta e as consequentes mudanças
climáticas. No caso da matriz de oferta de energia elétrica, a situação é ainda mais favorável pela grande participação da hidroeletricidade. 


Dentre as fontes energéticas renováveis nacionais, com baixa emissão de gases de efeito estufa, destacam-se: 1) os derivados energéticos da cana de açúcar (etanol e bagaço, este último na produção de calor na indústria do açúcar, do  álcool e de energia elétrica), sendo esta a segunda fonte, depois do petróleo, na matriz energética nacional. Esta fonte, que só existe no Brasil em montantes significativos, utiliza integralmente tecnologia nacional e o plantio 
da cana é realizado fora dos ecossistemas que o País preserva.


Além disso, não compete com as áreas destinadas à produção de alimentos; 2) Eólica e Solar, que no caso brasileiro, por diversas razões, apresentam condições muito favoráveis do ponto de vista ambiental e de economicidade da energia produzida; 3) Hidroeletricidade, que será destacada, a seguir, tendo em conta a relação com as barragens. O Brasil possui 12% do potencial hidroelétrico mundial, cerca de 260.000 MW, dos quais, com toda a dificuldade e incerteza da
afirmação a seguir, pode-se considerar 150.000 / 180.000 MW ambientalmente viáveis e competitivos com outras fontes na produção de energia elétrica. Considerando que o parque hidroelétrico atual apresenta algo acima de 100.000 MW em operação e construção, estão disponíveis para inclusão num programa nacional de expansão da geração hidroelétrica, nas próximas duas/três décadas, cerca de 50.000 / 80.000 MW. 


Até os primeiros anos do século atual, vínhamos seguindo uma rota de utilização de fontes energéticas renováveis, conjuntamente com baixa emissão de gases de efeito estufa, para a produção de energia elétrica. Nos últimos anos, com a interrupção da construção de novas hidroelétricas e com a incorporação de parcela elevada de geração térmica a derivados de petróleo, o Brasil alterou a rota de “descarbonização” da sua economia. Assim, pode-se dizer que o País está atualmente na contramão do que o mundo tem que fazer no contexto das mudanças climáticas. Isto, na prática, deve-se ao “encerramento” equivocado do programa nacional de expansão hidroelétrica. Inicialmente, pela paralisação dos estudos
de viabilidade de novos locais para as usinas e, em seguida, pela posição oficial do MME, no último Plano Decenal até 2030, que não priorizou a hidroeletricidade, tendo acertadamente contemplado as fontes energéticas eólicas e solar. No entanto, incluiu um programa de geração térmica a gás natural, com unidades que estarão produzindo energia elétrica até o ano 2050, ao contrário da desejável e necessária “descarbonização” que deverá ocorrer no mundo inteiro nas próximas décadas. Com imensos recursos energéticos renováveis de todos os tipos, o Brasil poderia ter uma liderança no mundo. Ou, no mínimo, ser um bom exemplo para diversos países nessa transição, que pode ser considerada uma “terceira revolução industrial”. Em outras palavras, trata-se de uma saída parcial ou quase total da “era do carbono”, como combustível, nos próximos 30/40 anos. Adicionalmente, seria muito benéfico para o País uma mudança nas estratégias de aproveitamento
dos recursos hídricos dos nossos rios. A hidroeletricidade deverá ser planejada dentro do contexto de uso múltiplo do recurso hídrico em certos rios. Em outros, usos como abastecimento humano, controle de cheias, navegação e irrigação podem ser mais importantes para a sociedade do que a energia elétrica. 


Estamos longe de ter um aproveitamento ótimo dos recursos hídricos dos nossos rios. O aproveitamento destes recursos necessita da construção de barragens de diferentes portes. Assim, deve ser promovido um amplo debate nacional sobre a viabilidade de um programa de construção de barragens nos nossos rios, com a liderança da hidroeletricidade, fonte energética bastante adequada à transição mundial, relacionado com as mudanças climáticas. Seria importante reexaminar a grande experiência nacional nas mais de 1.000 usinas hidroelétricas, de todos os tipos e portes, onde na grande maioria delas, o balanço de benefícios e custos, considerando todos os aspectos econômicos e socioambientais, inclusive para as comunidades que vivem nas proximidades das usinas, é favorável. 


O sistema interligado nacional de geração hidro/térmico/eólico/solar necessita aumentar o seu armazenamento, o que foi observado nas crises de suprimento energético que ocorreram nas últimas décadas, especialmente na crise hídrica de 2021. Para isso, o Brasil necessita voltar a construir reservatórios de regularização nos locais que apresentem condições favoráveis para sua implantação, inclusive usinas reversíveis sazonais, úteis para otimizar a operação das usinas hidroelétricas a fio d’água dos rios da região Amazônica e das fontes intermitentes eólicas e solares - estas últimas, com perspectivas de participação crescente na matriz nacional de oferta de energia elétrica.


Altino Ventura FILHO
É Engenheiro Eletricista formado pela Escola de Engenharia da Universidade Federal de Pernambuco. Exerceu, na Eletrobras, durante cerca de 25 anos, atividades de Planejamento do Sistema Eletro-energético nacional. Foi Chefe de Departamento, Assistente da Diretoria e Secretário Executivo do Grupo Coordenador do Planejamento dos Sistemas Elétricos. Foi Presidente da Eletrobras, Diretor Técnico Executivo e Diretor Geral Brasileiro da Itaipu Binacional e Secretário de Planejamento e Desenvolvimento Energético do Ministério de Minas e Energia. Atualmente exerce suas atividades junto à Academia Pernambucana de Engenharia e à Academia Nacional de Engenharia. 

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