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Exemplos de benefícios socioambientais propiciados por barragens

Por: Flavio Miguez de Mello
É Engenheiro Civil (UFRJ), Mestre em Geologia (UFRJ) e possui cursos de Extensão em Geotecnia (UFRJ) e em Pesquisa Operacional (University of Florida), bem como Treinamentos no US Army Corps of Engineers, US Bureau of Reclamation, Hydro Quebec, IPT e LNEC. Atuou como Chefe de Divisão de Estudos de Novos Projetos de Furnas, Diretor Técnico e Vice-Presidente da Enge-Rio Consultoria S.A., Diretor de Engenharia da Geólogos Consultores Ltda., Professor da Escola Politécnica da UFRJ em Geotecnia e Hidráulica e Professor convidado da PUC-Rio, IME, UERJ, INAG, USP. Presidente honorário do CBDB, Vice-presidente do ICOLD e Vice-presidente da Academia Nacional de Engenharia, já publicou três livros relacionados à Engenharia de Barragens, além de inúmeros trabalhos técnicos.

 

Geralmente, grandes obras hidráulicas implicam em expressivos investimentos financeiros. A simples constatação dessa realidade tem conduzido países economicamente desenvolvidos à implementação de múltiplos usos para essas obras, visando maximizar os benefícios que elas podem acarretar para a sociedade. Notadamente, na Europa, muitos dos mais conhecidos cursos de água (alguns dos quais transnacionais, como o rio Danúbio) foram aproveitados para usos múltiplos com sequências de obras hidráulicas que promoveram regularização de vazões, navegação interior, controle de cheias, geração de energia elétrica, turismo e lazer. Três Gargantas, a usina de maior potência instalada no planeta, tem como principal finalidade o controle das cheias do rio Yang-tsé. Em séculos anteriores, por muitas vezes, ela ceifou centenas de milhares de vidas por catastróficas inundações. Também promoveu navegação interior, geração de energia elétrica e outras finalidades acessórias. Uma análise da história das barragens no Brasil mostra que, de  um modo intensamente predominante, empreendimentos em hidráulica fluvial foram implantados para atender somente uma finalidade específica. São, portanto, escassas as obras fluviais projetadas para usos múltiplos, embora a ANA designe como barragens de usos múltiplos as que não são para geração de energia elétrica nem para contenção de rejeitos e de sedimentos. Apesar disso, a finalidade da maioria dessas barragens é única. Ao analisar as nossas mais destacadas obras fluviais, chega-se à conclusão de que são poucas as que foram implantadas, desde sua concepção, com a finalidade de usos múltiplos. Dessas obras, podem ser destacadas as barragens da hidrovia Tietê-Paraná, as barragens de Manso, Pedra do Cavalo, Sobradinho, Itaparica, e a mais antiga, Três Marias.

Figura 1 - A barragem e o reservatório de Três Marias, no rio São Francisco, são os primeiros grandes empreendimentos concebidos para obtenção de múltiplos benefícios, como regularização de vazões, navegação interior e geração de energia elétrica


No referido grupo, destaque para as obras implantadas na bacia hidrográfica do rio Paraíba do Sul, que beneficiam, diretamente, áreas densamente povoadas nos estados de São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro, e, indiretamente, importantes áreas metropolitanas, como as cidades de São Paulo, Rio de Janeiro e várias da Baixada Fluminense. Exemplifica-se a seguir dois notáveis empreendimentos. Um, desde sua concepção, foi projetado para usos múltiplos. O outro, que inicialmente foi planejado com o objetivo único de geração de energia elétrica, promoveu relevantes benefícios socioambientais.

 

O rio Paraíba do Sul é formado à El. 620,00 m no estado de São Paulo pela confluência dos rios Paraibuna e Paraitinga, cujas áreas de drenagem atingem mais de 1.800 m de altitude na Serra do Mar. O comprimento total do curso d’água, desde as nascentes do rio Paraitinga até a foz, em Atafona, no Norte fluminense, supera os 1.100 km. A bacia hidrográfica do rio Paraíba do Sul tem destacada importância por estar localizada entre os maiores pólos industriais e populacionais do País. Caracteriza-se pelos acentuados conflitos de usos de seus recursos hídricos e pela particular derivação de substancial parte de suas descargas para geração de energia elétrica e abastecimento de cerca de 10 milhões de pessoas na região metropolitana do Rio de Janeiro. O desenvolvimento de toda área da bacia do rio Paraíba do Sul depende dos reservatórios de Santa Branca, Jaguari, Funil e Paraitinga-Paraibuna, implantados, respectivamente, em 1960, 1972, 1978 e 1979. Para permitir a transposição de até 160 m³/s do rio Paraíba do Sul para a bacia do rio Guandu, a Light, concessionária de fornecimento de energia elétrica na mais destacada área do estado do Rio de Janeiro, contribuiu financeiramente com 100% da implantação da barragem de Santa Branca e com 49% das duas barragens, sete diques e demais estruturas que formam o reservatório de Paraitinga- Paraibuna. A operação desses quatro reservatórios, implantados nos trechos alto e médio da bacia hidrográfica do rio Paraíba do Sul, permite alcançar elevado grau de regularização de descargas e de controle de cheias no curso principal. Além disso, possibilita a operação de diversas captações de água para abastecimento de grandes cidades e geração de energia elétrica nas usinas da Light - que, até o final dos anos 60, operavam em sistema isolado em 50 Hz.

 

Na maior cheia já registrada na alta bacia do rio Paraíba do Sul, em fevereiro de 2000, o reservatório de Funil, implantado em 1979, com área de 39 km², capacidade total de 890 x 106 m³ e volume útil de 620 x 106 m³, promoveu o  amortecimento total das descargas afluentes, livrando de enchentes catastróficas as cidades e indústrias ribeirinhas nos estados de Minas Gerais e do Rio de Janeiro. Desse sistema, destaca-se o reservatório de Paraitinga- Paraibuna, implantado em 1978 nos vales dos dois formadores do rio Paraíba do Sul, criando um único grande reservatório, com volume de 4,73 x 109 m³ e área de 176,7 km² em seu nível d’água máximo normal de 714,00 m. A regularização de descargas é processada pelo deplecionamento do reservatório em períodos de estiagem, podendo chegar ao nível mínimo normal de 694,00 m com deplecionamento máximo de 20 m, que define o volume útil para regularização de vazões de 2,64 x 109 m³.

 


Figura 2 - A barragem do Funil, formadora de reservatório no rio Paraíba do Sul, é destinada para regularização de vazões, controle de cheias e produção de energia elétrica (216 MW) 


O sistema extravasor consiste em um grande vertedouro em tulipa não controlada com 27 m de diâmetro na crista e capacidade de descarga de 677 m³/s sob carga máxima de 2,50 m e dois descarregadores de fundo de capacidade total de 120  m³/s anexos na casa de força. O vertedouro em tulipa foi projetado para amortecer a cheia afluente de projeto de 5.400 m³/s, correspondente à descarga máxima provável, com capacidade de promover abatimento de 88% do pico da cheia. O volume entre o nível d’água máximo normal (El.714,00 m) e o máximo excepcional (716,50 m) é de 467 x 106 m³, equivalente a cerca de 80% do volume da hidrógrafa máxima afluente.


Essas excepcionais características de projeto garantem a segurança de várias importantes cidades e indústrias ribeirinhas implantadas nas margens do rio Paraíba do Sul. Sua capacidade de regularização de descargas beneficia diretamente 12 usinas hidroelétricas situadas a jusante e propicia segurança hídrica e condições adequadas ao abastecimento de água de extensas regiões urbanas dos estados do Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais.

Figura 3 - Barragem, dique, reservatório e casa de força (85 MW) de Paraibuna


Figura 4 - Reservatório de Paraitinga e vertedouro em tulipa (677 m³/s)


Como exemplos de benefícios de obras hidráulicas que, inicialmente, haviam sido concebidas para uma única finalidade, mas que, entre outros, garantiram a sobrevivência de toda uma raça indígena na Amazônia, destaca-se, como narrado a seguir, a atuação do setor elétrico nacional e das empresas de consultoria contratadas para a implantação da usina hidroelétrica de Balbina, no rio Uatumã, a cerca de 200 km ao norte de Manaus, no estado do Amazonas. No Brasil, existem 305 etnias indígenas que se comunicam em 274 diferentes idiomas, habitando 505 terras indígenas protegidas, que correspondem a 12,5% do território nacional. Uma dessas etnias é a Waimiri Atroari (Kinja, na denominação indígena local), que ocupa 2.585.911 hectares da Floresta Amazônica, e está situada na parte dos estados do Amazonas e Roraima, limitada, principalmente, pela margem norte do rio Amazonas e pelas margens leste dos rios Negro e Branco. O primeiro contato amistoso com o colonizador ocorreu por volta de 1870 através do etnólogo e botânico João Barbosa Rodrigues.

 

A partir dos anos 60 do século passado, houve a intensificação do contato da sociedade nacional com os indígenas, o que gerou choques belicosos e surtos endêmicos que impactaram os indígenas. Esses contatos foram intensificados com o início da exploração de cassiterita pela mineradora Paranapanema e pela construção da rodovia BR-174, que liga as cidades de Manaus e Boa Vista, as capitais dos estados do Amazonas e de Roraima. A estrada era considerada estratégica para a Região Norte do Brasil. Durante a construção dessa rodovia, ocorreram sérios embates com os indígenas, o que determinou a mobilização do Exército Brasileiro. Por fim, o 6º Batalhão de Engenharia e Construção concluiu a rodovia em 1979. Nessa época, os indígenas eram classificados como “em estágio primitivo e muito desconfiados, sendo temerário qualquer passo em falso.” Ocorreu, então, intenso despovoamento indígena, tendo a população Waimiri Atroari  experimentado drástica redução, como indicado abaixo. Como resultado dos estudos de inventário hidroenergético da Amazônia, realizado no início dos anos 70, foi selecionada a implantação de uma primeira hidroelétrica para suprimento energético de Manaus: a hidroelétrica Balbina, no rio Uatumã, afluente pela margem norte do rio Amazonas e integralmente situada na terra indígena Waimiri Atroari (que, naquela época, ainda não havia sido demarcada).

 

Na região, a hidroelétrica Balbina, com 250 MW instalados, é considerada o primeiro empreendimento com compromisso ético para minimizar impactos ambientais negativos e para realizar programas ambientais que beneficiaram a população indígena. Tais programas, projetados e implementados pela consultora Enge-Rio para a concessionária Eletronorte, compreenderam ações integradas nas áreas de saúde, educação, preservação ambiental e apoio à produção local em muitos subprogramas específicos. Desses subprogramas, enfatiza-se, a seguir, os de educação e de saúde.

Figura 5 - Usina hidroelétrica Balbina (250 MW)

 

O subprograma de educação envolveu extensa atividade de ensino básico, de acordo com as diretrizes do Ministério da Educação, somada ao ensino do idioma Waimiri Atroari para as crianças indígenas. Esse subprograma incluiu ainda a formação de professores indígenas (imparu, no idioma local) que, gradualmente, passaram a ministrar o ensino aos indígenas mais jovens.

Figura 6 - Indígenas Waimiri Atroari estudando

 

O subprograma de saúde levou tratamento médico para 62 aldeias Waimiri Atroari, eliminando a intensa tendência de extinção dos indígenas, o que vinha ocorrendo em rápido progresso antes do início da construção da hidroelétrica, nos anos 80. Os números a seguir, apesar dos mais remotos serem estimados, indicam essa importante reversão de expectativa. No final dos anos 60, os Waimiri Atroari eram estimados em cerca de 3.000 indivíduos. Em 1974, eram 1.500. Já em 1977,chegaram a ser apenas 374, enquanto que em 1983, foram reportados 350 indígenas.

 

Entretanto, a reversão, em consequência do subprograma de saúde, foi confirmada em 2011, quando 1.500 habitantes indígenas foram registrados, igualando a população de 1974. O mais recente censo, realizado com mais acurácia, em fevereiro de 2020, registrou 2.186 indígenas residentes de 62 aldeias (mydy taha, na língua local), sendo 1.096 homens e 1.090 mulheres. O impactante sucesso do subprograma de saúde proporcionado como contrapartida pela implantação da UHE Balbina pela Eletronorte, indiscutivelmente, evitou a extinção dos Waimiri Atroari. O apoio à população indígena, com elevada eficiência, segue mantido na região.

 

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